domingo, 31 de agosto de 2014

Os dez mandamentos de um debate eleitoral sórdido

por ALCEU LUÍS CASTILHO
(@alceucastilho)

1) Atacarás a pessoa, e não as propostas do partido.


Os candidatos de quem o eleitor não gosta são vistos como inimigos, e não como expressões de outros projetos de poder. O objetivo é atacar o caráter, arrebentar com a dignidade. Desconstruir – a pessoa. Desqualificar – o ser humano. A biografia deste pouco importa. Importa editá-la. Demonizar o político a partir de características existentes ou não, exageradas ou não. O respeito passa longe.

2) Distorcerás informações.

Este é um dos exercícios prediletos desse eleitor apaixonado. Seja por redução calculada das ideias e promessas do outro, seja pelas distorções propriamente ditas. Essa distorção pode ser infame, pode ser uma mentira deslavada. Mas o objetivo eleitoreiro – desprovido de cidadania – permite o milagre da multiplicação da falta de escrúpulos. Às favas as informações, e às favas o bom senso.

3) Serás precipitado, afoito, intempestivo.


Este item tem relação direta com o item anterior. Tudo ganha um sentido de aparente urgência. É preciso desqualificar o outro, e logo, numa espécie de corrida de cavalos. Com isso aumenta a chance de se distorcer a informação, e de se promover uma campanha injusta, agressiva, desumana. O relógio corre e inspira precipitação; esta precipitação potencializa todos os demais itens.

4) Enxergarás contradições apenas do adversário.

Os erros do candidato que se defende são totalmente minimizados, jogados para debaixo do tapete. Os do adversário, hipertrofiados. Esse exercício de cinismo ganha musculatura na medida em que os demais apaixonados concordam com os linchamentos e com o completo absurdo que seria o adversário ser eleito. Monta-se, então, uma caça às contradições. Mas uma caça sem regras, sem limites.

5) Importarás o que houve de pior em eleições anteriores.

Em vez de se aprender com os erros, eles são multiplicados. A sordidez espetacular de 1989 – um marco na história dos ataques eleitorais, com a invenção de uma tentativa de aborto – ganha filhotes eloquentes, eleição após eleição, em terrenos onde cada eleitor deveria guardar o mínimo de distância e respeito. Não são desenvolvidos novos formatos, com reprodução automática do que se fez de pior. Essa violência toda é também um filhote da ditadura.

6) Adjetivarás. (E simplificarás, insultarás.)

Com redução ao máximo das características positivas de seus adversários, e amplificação ao máximo de seus defeitos. Aqui, com um viés linguístico – redutor, embotador. O importante, nesse caso, é transformar toda uma visão de mundo, ou um projeto de país, evidentemente criticáveis, numa palavra-chave, de modo que até o próprio postante possa entender. A linguagem como carimbo.

7) Utilizarás argumentos de cor, classe, gênero. 

 
Misoginia, racismo e preconceito de classe (especialmente quando se trata de origem pobre) estão presentes em milhares de memes e em milhões, dezenas de milhões de comentários na internet. Tudo em larga escala. A condição de mulher motiva piadas e insultos específicos. O racismo costuma ser disfarçado em formato de “piadas”, ou comparações grotescas. O obscurantismo como farra, diversão.

8) Serás menos cuidadoso que teu próprio candidato.

Em outras épocas os ataques menos escrupulosos vinham de alguns candidatos, fossem os majoritários ou alguns nanicos. Estes eram escolhidos a dedo para a tarefa de enxovalhar os adversários, dizer coisas que poderiam pegar mal para o candidato majoritário. Funcionavam como uma espécie de jagunços eleitorais, de franco-atiradores. Muitas vezes de forma grotesca. O papel dos nanicos cabe hoje aos internautas.

9) Promoverás o apocalipse.

Somente no caso de determinado candidato vencer teremos um país sério, uma democracia consolidada, uma economia estável. Com os demais, virá o caos. Meu candidato? Locus amoenus, tudo lindo – o espaço da calma, da amenidade. O adversário? Locus horrendus – o espaço do horror. No limite, isso resulta em golpismo, que pode ser observado em eleitores de direita e esquerda, governistas ou não.

10) Ignorarás uma discussão séria sobre um projeto de país.


O décimo item é o pai de todos os demais. É dessa ausência de discussões mais sisudas, com um circuito mais consistente de informações e argumentos, que decorre a disposição para a infantilização e redução do debate. Observe-se que muitos temas importantes simplesmente somem do mapa. O horizonte se encolhe. A história do país se apequena. Fulano ou beltrano se tornam mais importantes que 500 anos (ou milhares) de história.

Isoladamente, alguns itens listados cima, como apontar contradições ou utilizar adjetivos, podem ser legítimos. Com comedimento. Juntos, apenas ajudam a promover o obscurantismo eleitoral. Debates de fundo funcionam melhor sem precipitação. E com a percepção de nuances, matizes. De um país e de um mundo político um pouco mais caleidoscópico que o preto no branco desse comportamento eleitoral binário.

Essa gritaria toda – essa voracidade toda, essa intolerância toda - não colabora com a democracia. E nem com as candidaturas que esse eleitor, mais ou menos mal-intencionado (às vezes apenas um distraído), julga defender. Então, por que perpetuar essa lógica? A tarefa de construir um país mais justo e menos desigual exige bem mais substância, paciência. E ética. Outro debate eleitoral é possível.


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