segunda-feira, 8 de julho de 2013

Quem matou MC Daleste? (Uma reflexão sobre polícia, cultura, periferias e violência.) 

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Uma estrela do funk, MC Daleste, morreu baleada durante show em Campinas, no sábado. Enquanto falava de um enquadro policial. Ou seja, de uma batida ostensiva, de um baculejo, tão comum nas periferias. Aquelas abordagens truculentas que atingem os mais pobres, preferencialmente os negros. Marcados diariamente pela humilhação e pela ameaça.

Cortemos agora para uma música do MC Daleste, "Apologia". Sobre a rotina de um assaltante: Frase-chave: "Fala pra nois quem é o poder/ matar os polícia é a nossa meta".

Leio no Correio da Bahia que, em um dos posts sobre a morte do músico no Facebook, alguém comemora sua morte e transcreve um trecho dessa letra. O comentário tinha recebido 200 "curtidas". Como? Duzentas pessoas comemoraram a execução do artista por ele ter escrito música contra a polícia? (E nem estamos aqui a falar dos outros milhares de bárbaros que comemoraram a morte porque ele era funkeiro.)

Basta ler os comentários nessa página da música, no portal Terra, para ver mais gente celebrando o que consideram uma vingança. Por exemplo: “Um tiro foi pouco, esse tá lá no inferno vendo milhares rindo da morte dele”. Ou então: “Eu vou ser policial. Quer matar polícia? Se fudeu, peba. Bandido bom é bandido morto”. E assim por diante.

Isso significa que foi alguém ligado à polícia, ou dela um defensor cego, que efetuou o disparo? Não é possível afirmar isso. Pode até ter sido alguém se aproveitando desse contexto, para disfarçar um crime comum. Pode ter sido qualquer assassino, qualquer covarde. Mas é possível afirmar – e lamentar – que a hipótese de ação de um grupo de extermínio seja perfeitamente verossímil.

(Os jornais cariocas, curiosamente, exploraram mais o detalhe do enquadro policial, instantes antes de MC Daleste ser baleado, que os paulistas.)

Não se trata aqui – e muito longe disso - de defender esta ou aquela letra. Será sempre injustificável, numa sociedade minimamente sadia, a defesa de crime contra a vida. Se dissesse isso numa entrevista (e um jornalista sério perguntaria a ele se concordava com a letra), seria processado. Numa letra? Um tema para pessoas especializadas, juristas. Mas também para sociólogos.

O fato é que, mesmo sendo considerada uma apologia ao crime, a solução mais absurda para defensores da vida de policiais (e todos os defensores de direitos humanos o são) seria a execução do letrista. Solução paradoxal, inclusive, por se tratar de outro crime. Que só gerará mais violência. Mas a realidade das periferias é assim: absurda e violentíssima.

Existe pena de morte em São Paulo? E com a assinatura de policiais? Claro que existe. E não só em SP: vide a recente chacina na Maré, no Rio, minimizada pela imprensa brasileira. (Leiam Eliane Brum: “Também somos o chumbo das balas”.) O jornalista Caco Barcelllos denunciou os grupos de extermínio lá atrás, no livro “Rota 66” - e mesmo assim foi hostilizado, durante os protestos de junho, por manifestantes desinformados.

O caso de MC Daleste é a primeira execução de um letrista revoltado com a polícia? Não, não é o primeiro caso. Vejamos este título do R7, de 2012: “Sobe para seis o número de funkeiros mortos na Baixada Santista”. Estamos diante de um extermínio específico?

Curiosamente, leio que MC Daleste estava preferindo o "funk ostentação", que deixou de lado letras sociais para dar lugar a temas como grifes, roupas de marca, carros de luxo, bebidas, dinheiro e mulheres. Aos 20 anos, estava ganhando muito dinheiro.

Talvez o músico optasse por nem falar mais do cotidiano humilhante na periferia? Talvez. Mas também isso fica agora apenas como hipótese. O fato é que, ao menos durante os shows, ele ainda cantava as músicas de protesto.

Há cinco anos, na Folha de S. Paulo, o apresentador Luciano Huck (distraído em relação a crimes ambientais) ocupou espaço para reclamar de um roubo. Levaram seu Rolex. O escritor Ferréz escreveu um texto ficcional, onde o narrador (o assaltante) dizia que, no fim das contas, todos saíram ganhando: “O assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio”.

Ferréz foi processado. E ficou abalado com a reação judicial a uma peça de ficção. Achou que, com esse recurso, sua liberdade de expressão seria preservada. Longe disso.

Esses episódios, somados, entre fatos e possibilidades, mostram que a fronteira entre ficção e realidade (em uma civilização, desejável) não existe em São Paulo. Nem aos olhos da Justiça, nem nas ruas.

A cultura de massas, obviamente, reflete a cultura vivida. Se esta é composta por assaltantes, traficantes, e por uma polícia covarde e assassina, como fugir disso? Terão os artistas da periferia de falar apenas de roupas de marca e mulheres?

Hoje se matará porque um músico fez apologia a algum crime. O que já será um sintoma de nossa barbárie intrínseca, disfarçada de defesa da legalidade. Amanhã se matará por qualquer letra. Por um músico denunciar – legitimamente – um baculejo. Ou a humilhação, a opressão, a desigualdade. É como dizia John Lennon (branco e rico), baleado em 1980: “Do jeito que as coisas vão, eles vão me crucificar”.

Crucificar artistas é mais fácil que discutir e combater a violência.

E por isso assusta o silêncio dos jornalistas e dos músicos em relação a MC Daleste. Ou à morte sistemática de funkeiros. O silêncio de todos aqueles músicos (brancos e negros) que lutaram contra a ditadura. Dos jornalistas que veem colegas serem mortos ou exilados por fazer reportagens sobre violência policial.

Parece que estão achando que não é com eles.

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