sábado, 17 de dezembro de 2011

Pietro Germi, Elio Petri e os fura-greve da USP

“O Ferroviário” é um clássico tardio do cinema italiano. Belíssimo, o filme – dirigido e estrelado por Pietro Germi – possui estética neorealista, mas só foi lançado em 1956. Longe, portanto do auge desse movimento, que marcou o pós-guerra e mudou a história do cinema.

Andrea é um maquinista de trem. Tem um acidente e é afastado. Bebe demais e perde a confiança em seus colegas. Durante uma greve, vai trabalhar. Para aquela categoria, na Itália e naquele momento, era uma heresia. É chamado de “crumiro” – o termo para os fura-greve. Era uma vergonha ser classificado como “crumiro”.

Em 1970 e 1971, Elio Petri dirige o ator Gian Maria Volonté em duas interpretações extraordinárias: “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” (1970) e “A Classe Operária vai ao Paraíso” (1971). São duas obras-primas.

Essa era a época do Cinema Político Italiano. O tema do operariado volta com força no segundo filme a partir do personagem Lulu, sob uma trilha sonora atordoante de Ennio Morricone. Lulu é um alienado. Está preocupado em ganhar hora-extra, e não com a luta coletiva dos trabalhadores.

Ele também fura uma greve e igualmente é chamado de “crumiro”. O filme (assim como “O Ferroviário”) mostra a tensão psicológica por trás dos embates sindicais, políticos. De um individualista convicto Lulu passa a ter alguma consciência de classe.

No início da sequência abaixo os estudantes tentam conscientizar os trabalhadores, na fábrica. "Mais salário, menos trabalho". Ennio Morricone consegue ironizar, com a música, as recomendações dos chefes de produção. Um trabalhador aborda um estudante e pergunta: "Por que vocês não voltam para a universidade?"


A REALIDADE ATUAL

Penso nessas duas referências cinematográficas ao observar como os estudantes da USP lidam com a greve – e com o sentido do respeito à decisão coletiva.

A diferença mais evidente é a banalização do individualismo, décadas após a realidade retratada pelo cinema italiano. Muitos estudantes chegam a ter orgulho de furar a greve. Em contrapartida, os grevistas não têm força política para fazer pressão; ocorre quase um mecanismo de inversão, onde os grevistas (apesar da decisão em assembleia ser pela paralisação) é que seriam os extraterrestres da história.

Como estudante da USP, votei contra a greve no dia em que a reitoria foi desocupada por 400 policiais – que prenderam 73 pessoas. Mas a partir daí respeitei a decisão coletiva, tomada numa assembleia com 3 mil estudantes. Para mim era e é o mínimo. Não é algo, porém, que comova boa parte dos estudantes - que seguem ou assistindo aulas, ou entregando trabalhos e fazendo provas.

Frente a uma discussão sobre tudo isso, os fura-greve ficam incomodados até com essa definição: a de “fura-greve”. Consideram que deveria existir outra palavra. Alguém propôs “dribla-greve” – nós, no país do futebol.

Ponderei que a palavra é essa mesma. E que, na Itália, um termo somente - “crumiro” – sintetiza a situação de desrespeito à decisão da categoria. A greve é um instrumento de pressão que depende da massa, do coletivo. E brechas nessa multidão lembram, sim, a imagem de “furo”.

Os fura-greve não estão nem aí para essas histórias e para essa conceituação. Estão preocupados com seus projetos individuais.

Com um agravante: querem furar greve sem serem chamados de “fura-greve”.

Assim fica fácil, não é.

Curioso é que eles estão sempre prontos a lembrar aos grevistas dos ônus de suas decisões. Mas não querem ter o ônus da decisão inversa, o ônus de serem vistos como o que são: individualistas; sem comprometimento político (ou, pior, comprometidos com o lado oposto); fura-greve.

Não percebem que, ao desafiar decisões coletivas legítimas, arrebentam a possibilidade de mudanças. Deslegitimam o que foi decidido pelos colegas e, simplesmente, compactuam. No caso, com uma lógica policialesca – muito bem representada, aliás, lá no cinema italiano dos anos 70, pelos mesmos Petri e Volonté em “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”.

Essa geração de pragmáticos coloca-se acima de qualquer suspeita e mostra que, no Brasil dos anos 2000, cidadania é um conceito praticamente furado. A grande utopia é a de se formar logo e rumar para o “mercado”. Parafraseando o ex-ministro Jarbas Passarinho, é como se dissessem: “Às favas os escrúpulos de consciência de classe”.

CURIOSIDADE

Na última cena de "Classe Operária vai ao Paraíso" um homem pilota freneticamente uma máquina, dentro da fábrica. Esse homem é um dos grandes músicos do século XX. Seu nome, Ennio Morricone.

Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

PS: aos sábados escrevo sobre cinema. Com o Natal e o Ano Novo, volto ao tema somente após as festas, em 2012.


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